Por Rejâne M. Lira-da-Silva
Ao colocar os pés na África subsaariana definitivamente não sou mais a mesma.
Aqui me reconheci como Ser Humano. Sim, porque partiu daqui a nossa origem.
Aqui me reconheci como Brasileira. Sim, porque tenho sangue índio, negro e português correndo em minhas veias.
Aqui me reconheci como Cidadã do mundo. Sim, porque aqui cabe o mundo inteiro!
Viva a África! (Cotonou, Benim, 08/10/2015)
A partir de 2014, criei um campo de atuação na Universidade Federal da Bahia, denominado “Ciência Humanitária”, que significa que o trabalho de pesquisa de cientistas deve estar aliado a atividades humanitárias em regiões pobres do Brasil e de outros países da África e América Latina, por exemplo. O trabalho humanitário pode ou não estar associado ao seu campo de pesquisa, envolvendo inclusive trabalhos de ajuda à equipe médica em hospitais, à equipe de educação em escolas ou mesmo à escuta e apoio as pessoas mais carenciadas em asilos, templos religiosos (independente de ter ou não uma religião), ONG e/ou associações comunitárias.
A ciência humanitária é portanto um trabalho de Voluntariado realizado por Cientistas que traz benefícios para a sociedade em geral e para o pesquisador (a) que realiza tarefas voluntárias, aliadas às suas atividades de pesquisas.
O trabalho voluntário produz importantes contribuições, tanto na esfera econômica como na social, e contribui para a uma sociedade mais coesa, através da construção da confiança e da reciprocidade entre as pessoas. Ele serve à causa da paz, pois abre oportunidades para a participação de todos (Organização das Nações Unidas – ONU).
Nosso trabalho de ciência humanitária se consolidou com Projeto Sala Verde da UFBA do Edital PROEXT/Programa Vizinhanças 2014-2015 da Pró-Reitoria de Extensão Universitária da UFBA, com o objetivo de trabalhar junto com a comunidade quilombola de São Francisco do Paraguassu (Cachoeira/BA), desenvolvendo atividades de educomunicação, democratizando o acesso à informação ambiental e funcionando como espaço democrático de atuação social, cultural, política e ambiental, através da realização de Oficinas (ver atividades no site da Sala Verde da UFBA https://salaverdeufba.wordpress.com/).
De 14 de setembro a 10 de outubro de 2015 ultrapassei as fronteiras e trabalhei na África, no Benin e na Costa do Marfim, em parceria com os pesquisadores do Instituto Pasteur, realizando ações humanitárias, em paralelo com pesquisas sobre acidentes por animais peçonhentos, durante meu Estágio Sênior, financiado por uma bolsa da CAPES (Ciência sem Fronteiras) e orientado pelo Dr. David Williams, da Universidade de Melbourne, Austrália. Minha jornada começou dia 20 de agosto de 2015 quando viajei para Lisboa, Portugal, para participar do XVI Encontro Nacional de Educação em Ciências, de 10 a 12 de setembro na Universidade de Lisboa; e finalizou neste mesmo País, quando ao retornar do continente africano, participei do 2º Encontro Lusobrasileiro da História da Medicina Tropical, de 14 a 16 de outubro na Universidade Nova de Lisboa, com a apresentação de pesquisas em parceria com diversas instituições brasileiras.
De Lisboa, dia 14 de setembro de 2015 fui para o Benin e depois para Costa do Marfim (dia 30 de setembro de 2015), como parte do meu Projeto de Pós-Doutorado, com o objetivo de conhecer globalmente o problema dos acidentes por animais peçonhentos, para além da realidade brasileira.
O Benim, oficialmente República do Benim (em francês: République du Bénin), é um país da região ocidental da África limitado a norte por Burkina Faso e pelo Níger, a leste pela Nigéria, a sul pela Enseada do Benim e a oeste pelo Togo. A capital constitucional é a cidade de Porto-Novo, mas Cotonou é a sede do governo e a maior cidade do país, que tem 112.622 km² e uma população de quase 9 milhões de habitantes. Do século XVII ao século XIX foi governada pelo Reino de Daomé. Esta região foi referida como a Costa dos Escravos, desde o século XVII devido ao grande número de escravos embarcados para o Novo Mundo durante o tráfico negreiro transatlântico, inclusive para o Brasil, principalmente para a Bahia. Após a escravidão ser abolida, a França tomou conta do país e rebatizou Daomé francês. Antiga colônia francesa, o país alcançou independência em 1 de agosto de 1960, com o nome de República de Daomé. Em 1975, adotou o atual nome de Benim, em razão de o país ser banhado a sul pela Baía do Benim (https://pt.wikipedia.org/wiki/Benim). A despeito da língua oficial ser o francês, estar no Benim é como estar na Bahia, o mesmo clima tropical e a mesma gente hospitaleira de sorriso largo. Mas claro que há diferenças, o país é muito pobre e a miséria, a fome e as doenças estão em todo lugar, situação já superada pelo Brasil. A relação Bahia-Benim é tão forte, seja na influência dos beninenses na nossa religião e culinária, principalmente, que foi criada a Casa do Benim, em 1988, pelo então prefeito Mário Kertész, juntamente com a arquiteta Lina Bo Bardi e o fotógrafo e antropólogo Pierre Verger. Vale muito a pena conhecer, fica no Pelourinho! Do Benim escrevi:
O que a Bahia tem a ver com o Benin? Tudo! O acarajé por exemplo, é daqui, assim como o dendê e o feijão fradinho. A baiana foi quem aumentou o bolinho e colocou vatapá, caruru, camarão e salada. Virou um dos nossos patrimônios… (30/09/2015).
Ainda sobre Bahia e Benin, é bonito de ver as origens do Candomblé e da Umbanda, na religião Vodum, com os mesmos orixás. Quem melhor retratou essa semelhança foi o querido Pierre Verger. Aqui há respeito por todas as religiões, inclusive o Vodum, a ancestral. (30/09/2015).
Eu teria muito o que falar sobre estar neste País, mas vou contar a experiência mais significativa que vivi na cidade de Ouidah, quando visitei o Templo das Serpentes e a Porta do Não Retorno. Ouidah significa python, uma serpente adorada aqui como uma divindade por sua força e beleza e o povo ouiadense traz no rosto as marcas feitas quando ainda são bebês emhomenagem a este animal. Mas foi na Porta do Não Retorno que tive a minha maior emoção. Este monumento é reconhecido como patrimônio mundial da humanidade pela UNESCO e é um Museu. O local era o último passo para a escravidão de africanos de vários países, como o próprio Benin, Togo, Nigéria, Angola, etc., para outros países, principalmente para o Brasil (Bahia). Lá escrevi:
No caminho, meu coração já estava apertado, mas quando cheguei aqui desabei no choro ao sentir o sofrimento das pessoas naquele lugar. Diante dos 3 africanos que estavam comigo senti vergonh
a por ser de um país que arrancou crianças, mulheres e homens da sua terra natal para morrer nos barcos ou viver o horror da escravidão no Brasil. Anselmo, meu guia, me abraçou e disse “não chore, a escravidão é passado. Este monumento foi erguido para mostrar aos povos que saíram daqui só os corpos porque o espírito dos africanos ficou aqui na Africa”. Ao mesmo tempo, senti que estava em casa, em Salvador, a mesma gente boa, a mesma temperatura, o mesmo vento, o mesmo cheiro e cor do mar… Sempre soube, somos todos Africanos… (17/09/2015)
No Benim, fui recebida pelo pesquisador Jean Philippe Chippaux do Instituto Pasteur em Cotonou, que me orientou a realizar a pesquisa no Hospital Evangélico de Bembereke, cidade situada no norte do país, quase na fronteira de Burquina Faso.
A viagem foi uma aventura à parte e vivi o momento mais perigoso quando, na fronteira com a Nigéria, o ônibus em que eu estava foi parado pelo grupo armado terrorista Boko Haram (uma organização fundamentalista islâmica de métodos terroristas que tem como ideologia a imposição da lei Charia, combate à corrupção no governo, a falta de pudor das mulheres, a prostituição e outros vícios; segundo eles, os culpados por esses males são os cristãos, a cultura ocidental e a tentativa de ensinar algo a mulheres e meninas, que são sequestradas e começam uma vida nova como servas). Felizmente não entraram no ônibus e só exigiram dinheiro do motorista. Sendo mulher e sozinha em um país de maioria mussulmana, era mesmo aos olhos deles, muito, muito diferente… Desembarquei no meio da estrada, em frente ao hospital, às 18h de uma sexta-feira. Já estava escuro e me perguntei, será que vou encontrar alguém da administração para me levar ao alojamento? Sim! Cheguei e já estavam à minha espera. Fui logo conduzida ao alojamento dos médicos, missionários e voluntários e ainda recebi um carona para comprar alguma comida na cidade, que era muito, muito pequena. Alojada e alimentada, fechei os olhos e me senti feliz de estar alí, junto ao povo africano.
O trabalho de pesquisa no Hospital Evangélico de Bembereke teve como tema “As consequências da negligência: análise do custo do tratamento do ofidismo em um hospital
no Benin”, onde pesquisei as fichas do pacientes atendidos e o custo do tratamento que é muito caro, chegando a 10.000 reais, apesar do subsídio dado pela Igreja Evangélica, pagos quando é possível, por trabalhadores rurais e de baixa renda. Sem dinheiro, dezenas de pessoas morrem todos os dias, sem receber qualquer tipo de assistência. No Brasil, o tratamento é totalmente gratuito para a população, que é atendida em hospitais e postos de saúde pelo SUS. O trabalho humanitário envolveu o apoio à equipe de saúde (médicos e enfermeiros), no cuidado e transporte de pacientes, mas principalmente o apoio emocional aos pacientes, com visitas e conversas. Entre estas conversas, a orientação sobre a prevenção e cuidado em relação aos acidentes por serpentes. De lá escrevi:
Em Bembereke, norte do Benin, fronteira com o Níger e Burkina Faso, neste hospital acompanhando os pacientes picados por serpentes, parece que o mundo abandonou este povo… Onde há tanta pobreza e miséria há uma gente maravilhosa, com um sorriso aberto e franco… (24/09/2015).
Obrigada a toda a equipe do Hospital Evangélico de Bembereke, Benin! Aqui el@s são assim, FORTES, para trabalhar em condições precárias e lutar em favor da VIDA! Gente e experiências inesquecíveis! Até breve! (24/09/2015).
Minha reverência a esta gente beninense trabalhadora, mulheres, homens e infelizmente crianças. Há muita semelhança com a Bahia… (25/09/2015).
A Costa do Marfim (em francês: Côte d’Ivoire), oficialmente République de Côte d’Ivoire, é um país limitado a norte pelo Mali e por Burkina Faso, a leste por Gana, a sul pelo oceano Atlântico e a oeste pela Libéria e pela Guiné. Sua capital é Yamoussoukro, mas a maior cidade é Abidjan. O país tem 322.463 km² e uma população de mais de 20 milhões de habitantes. Os antecessores da população atual se instalaram na área entre os séculos XVIII e XIX. Os exploradores portugueses chegaram no século XV e iniciaram o comércio de marfim e escravos no litoral. No século XVII estabeleceram-se diferentes estados negros, entre os quais se destacou o dos baules por suas atividades artísticas. No final do século, os franceses fundaram os entrepostos de Assini e Grand-Bassam e, no século XIX, celebraram uma política de pactos com os chefes locais com o objetivo de estabelecer uma colônia. Em 1887, iniciou-se a penetração para o interior e a região se tornou uma colônia autônoma em 1893. Em 1899, passou a fazer parte da federação da África Ocidental Francesa. A ocupação militar ocorreu entre 1908 e 1918, enquanto se construía a linha férrea entre o litoral e Bobo-Dioulasso, hoje pertencente a Burkina Faso. Em 1919, a parte norte da colônia se tornou independente. Abidjan permaneceu sob jurisdição francesa durante a Segunda Guerra Mundial, embora a França estivesse ocupada pelos alemães. Em 1944, foi criado o Sindicato Agrícola Africano, que deu origem ao Partido Democrático da Costa do Marfim (Parti Démocratique de la Côte d’Ivoire). Em 1958, foi proclamada a República da Costa do Marfim, como república autônoma dentro da Communauté française (Comunidade Francesa) e, em 1960, alcançou a independência plena (https://pt.wikipedia.org/wiki/Costa_do_Marfim)
Na Costa do Marfim fiquei em um hospedada em um hotel em Abidjan, a única mulher, por sinal. Abidjan é considerarada a 10ª pior cidade do mundo para se viver, sendo uma espécie de “São Paulo” piorada do país. A metrópole concentra a base econômica e o maior contingente populacional (4,7 milhões de habitantes) da Costa do Marfim. Altos índices de criminalidade, violência extrema, abuso de poder e corrupção, além de taxas elevadas de consumo de cocaína entre os jovens tornam a cidade uma péssima opção para se viver, de acordo com a revista britânica The Economist. (http://www.ibdn.org.br/novo/index.php/ultimasnoticias/1845-as-10-piores-cidades-do-mundo-para-viver.html). De fato, a cidade é poluída, as condições sanitárias são muito ruins e praticamente não existe transporte público. A despeito disso, no centro da cidade existe a linda floresta de Banko, um parque nacional onde vi pela primeira vez chipanzés livres na natureza e isso compensou todos os riscos… Há um fosso social enorme, com muitos bairros muito pobres e poucos bairros muito ricos. Fiquei no bairro popular de Yopougon, que conta com cerca de 2 milhões de habitantes e é o maior e mais populoso bairro da cidade. A experiencia foi incrível pois pude vivenciar o dia-a-dia dos marfinenses e conheci um povo alegre e muito trabalhador. Fui recebida pela equipe do Instituto Pasteur e trabalhei junto com o Farmacêutico/Herpetólogo Marc Hermann Akaffou, que se tornou um grande amigo.
O trabalho de pesquisa teve como tema “O impacto da negligência dos acidentes por serpentes na Costa do Marfim”. Para isso, percorri todo o sul do país, da Guiné até Gana, visitando unidades de saúde, hospitais e a comunidade, conversando com médicos, enfermeiros, farmacêuticos, “curandeiros”, pacientes e a família. O trabalho humanitário consistiu em auxílio à
equipe de saúde no que fosse necessário, auxílio em campanha de vacinação contra a poliomielite e conversas com pessoal da saúde sobre tratamento e com os pacientes sobre a prevenção e cuidado em relação aos acidentes por serpentes. Como pesquisadora-humanista vivenciei minha maior emoção ao acompanhar um garoto picado por uma Naja, que foi a óbito porque seu Pai não tinha dinheiro para pagar o tratamento. Este caso, me mostrou que as mortes por serpentes na África não são apenas número, tem rosto, nome, sobrenome, família e principalmente sonhos. De lá escrevi:
Na Costa do Marfim, a situação dos acidentes por serpentes é negligenciada como em toda a África. Nestes 2 dias viajei por várias comunidades até a fronteira com Gana e hoje encontrei a situação mais grave. Um menino de 14 anos picado por uma Naja (provável), que não vai receber o tratamento porque seu pai não tem dinheiro para pagar. Ele tem uma equipe médica, está em um hospital público que tem o soro, mas custa o absurdo de 100 euros 1 ampola! Saio daqui com a pior das sensações: não posso fazer nada…, apenas registrar. No entanto, em colaboração, podemos fazer muito em um futuro próximo, para ajudar a minimizar este problema… Para ele e a família, meu apoio e a minha compaixão… (03/10/2015).
Despeço-me da Costa do Marfim (Cote d’Ivroy) com a sensação que viajar nos torna mesmo mais ricos. Cheguei em Abidjan sem conhecer nada nem ninguém e com a missão de fazer um diagnóstico do ofidismo no país. Missão difícil, mas não impossível quando se encontra uma equipe tão amigável e acolhedora, como a do Instituto Pasteur. A el@s, minha gratidão, especialmente ao colega herpetólogo Akkafu! Na Costa do Marfim, conheci a dramática situação dos pacientes picados por serpentes, realmente negligenciada pelo governo. Mas também conheci os belos e incríveis animais africanos, particularmente as serpentes. Estive na floresta africana de Banko. Vi praias, lagunas e rios. Conheci uma verdadeira baiana, não vendendo acarajé, mas bolinhos de milho. E finalmente, vi o que une a Bahia à Costa do Marfim: o povo alegre e trabalhador, a comida, a dança, o clima, a música e principalmente a coragem e a capacidade de vencer as adversidades e VIVER! Até breve! (07/10/2015)
Car@s leitores, esta foi a experiência mais marcante de minha vida como ser humano, cientista e divulgadora da ciência. Retornei para o Brasil em 17 de outubro de 2015 para participar do 6º Encontro de Jovens Cientistas e do Encontro Nacional Vital para o Brasil sobre Animais Peçonhentos (São Paulo), quando neste último evento, partilhei minha experiência com especialistas brasileiros. Voltei com muitos projetos e sonhos em unir pesquisadores e instituições em ajuda aos países da África, uma vez que o Brasil é um modelo de tratamento gratuito dos acidentes por animais peçonhentos, graças a Vital Brazil, que descobriu a especifidade do soro e doou a patente ao povo Brasileiro. Também sonho em realizar uma parceria com o Instituto Pasteur do Benin e Costa do Marfim, como o intuito de levar estudantes baianos para trabalhar como voluntários nestes dois países, através de cooperação a ser firmada com a UFBA. Afinal, cientistas não vivem apenas de suas pesquisas, podem também viver de sonhos e de que seu saber ajude a manter a paz, trazer alívio em situações de emergência, promover os direitos humanos, melhorar as condições de saúde, ensinar técnicas efetivas de agropecuária, por exemplo, promover a igualdade de sexos e proteger o meio-ambiente.
Dia 07 de novembro de 2015 coloquei meus pés na estrada novamente rumo a Austrália e a Pápua Nova Guiné, mas esta aventura eu conto no próximo número, até mais!
*Rejâne M. Lira-da-Silva é Bióloga, Professora Associada do Instituto de Biologia da UFBA e Bolsista de Estágio Sênior da CAPES (Ciência sem Fronteiras) – 2015-2016 (rejane@ufba.br)
Este arquivo foi publicado na Revista Jovens Cientistas n.7, para ler na integra acesse: https://goo.gl/Y5nTuP